restos de apartheid (reportagem completa)

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no dia seguinte, os policiais ainda cercavam a mina de platina marikana, no noroeste da áfrica do sul. os conflitos contra grevistas provocaram, além dos 34 mortos, mais 78 feridos. a região fica a 100 km de johannesburgo.

a própria polícia disse que tentou dispersar os grevistas mas não teve êxito. e que os agentes atiraram em sua própria defesa.
três mil mineiros estavam armados com paus e facões em uma colina próxima da mina da empresa lonmin, que tem sede em londres. o conflito teve saldo de 259 detidos. a mais sangrenta operação de segurança desde o fim do apartheid foi um duro golpe emocional para a sociedade sul-africana. os cidadãos e a imprensa puseram em dúvida as mudanças do período 
pós-apartheid. era o dia 16 de agosto de 2012.
as manchetes dos jornais locais no dia seguinte chamaram de matança e de campo de morte. as imagens mostravam policiais brancos e negros armados, caminhando com indiferença por entre os corpos.
as imagens, segundo a imprensa, trouxeram à memória o passado racista na áfrica do sul. uma emissora de rádio local vinculou o incidente com a matança de sharpeville em 1960, quando a polícia do apartheid abriu fogo sobre uma multidão de manifestantes negros e matou mais de 50. 
as manifestações em marikana continuaram nos dias seguintes. mas com as mulheres dos mineiros. os grevistas continuaram sua greve, enquanto os policiais insistiam que apenas tinham se defendido, porque, afinal, os mineiros usavam armas brancas. mas houve outro reflexo do massacre. a lei sul-africana determina que todas as pessoas detidas em um lugar, onde houve um tiroteio envolvendo policiais, têm de ser indiciadas por assassinato, independentemente de as vítimas serem agentes ou não.

a acusação recai sobre 270 mineiros. os 259 detidos no dia 16 de agosto, mais os feridos que foram presos ao sair do hospital. o juiz marcou a próxima audiência para esta quinta-feira, 6 de setembro. e até esta data os detidos continuaram presos. especialistas jurídicos questionaram a lei. eles entendem que não se pode usar a doutrina da intenção comum para culpar os mineiros pela morte dos colegas.
colegas que foram mortos pela polícia. 
detalhe importante: nenhum dos policiais que matou os mineiros estava preso.

interpretem a lei como quiserem. você, leitor. use sua imaginação. pense nas várias possibilidades em que você, um policial branco, poderia matar negros (eles armados ou não), e ainda culpá-los pelas mortes… pense nisso…

a greve de marikana não era autorizada. mas isso pouco importa. antes dos 34 mortos no massacre, dez homens – dois policiais e dois guardas – morreram nos enfrentamentos entre sindicatos entre os dias 10 e 12 de agosto.

o presidente zuma chegou a dizer que existe espaço na democracia sul-africana para resolver qualquer disputa com diálogo, sem violência e sem descumprir a lei. mas a opinião pública está preocupado mesmo é com os  resquícios de comportamento racista na polícia. mesmo com integrantes negros em seu grupo. 
é o tal costume de resolver conflitos na porrada, ou na base dos tiros. aí não importa se o policial também é negro. ele está dentro do sistema sujo, que não é de contenção, mas de execução.
os mineiros fizeram greve por aumentos salariais, mas a raiz do conflito está na rivalidade entre dois sindicatos: a associação de mineiros e trabalhadores da construção é um sindicato novo, que representa a maioria dos mineiros em greve. e é visto como uma ameaça ao domínio de 25 anos do sindicato nacional de mineiros da áfrica do sul, ligado ao partido que governa a áfrica do sul desde 94.  
os mineiros e suas famílias protestam diariamente pelo massacre dos 34 trabalhadores. alheia a isso, a empresa lonmin, que é a terceira maior produtora mundial de platina, pressiona os outros 25 mil trabalhadores para que voltem ao trabalho. a mineradora garantiu que todos teriam segurança.
há o temor de que o massacre de cinco dias se repita. por isso muitos não querem voltar. por outro lado, o governo sul-africano pediu aos donos da empresa de marikana que suspendessem o prazo estabelecido para o regresso ao trabalho dos mineiros. esse prazo acabou uma semana depois do massacre. um quarto dos funcionários voltou. 

momentos depois, marc munroe, vice-presidente da lonmin, assegurou que despedir os grevistas não vai melhorar a situação. a empresa entende que colocar datas limites e ultimatos não vão contribuir para um ambiente estável. mas ao mesmo tempo, afirmou haverá consequências para quem não vier trabalhar. (alô, alguém está ligando para o massacre?)
o presidente jacob zuma se envolveu pessoalmente na história. ele pediu a suspensão do ultimato até que estejam identificadas e enterradas todas as vítimas do massacre. 
os líderes do protesto decidiram continuar com a greve até que conseguissem a melhora salarial que pretendem. 12.500 rands, ou 1.500 euros. eles receberam apoio de chefes tribais da região, políticos da oposição e organizações da sociedade civil. ao mesmo tempo, o presidente jacob zuma prometeu que as mortes dos mineiros serão investigadas. doa a quem doer.

difícil acreditar que vá doer em todos os lados. mesmo vendo representantes do governo descendo e subindo as escadas, e fazendo reuniões para negociar o fim de uma greve que está emperrando a economia do país. a alta comissária de lesoto para a áfrica do sul, dineo ntoane, disse que o governo tenta agradar os mineiros para que voltem ao trabalho. essa é a prioridade: voltar ao trabalho. se não voltarem, podem perder seus empregos, falou dineo.
zolisa bodlani, representante dos mineiros, disse que a empresa não está disposta a prosseguir negociando. por isso o governo sul-africano entrou com mais determinação na história. para evitar um problema maior.
o analista de mercado, loane, sharp, disse que a greve em lomin custou milhões de dólares ao país. segundo ele, há perdas da produção de platina a cada semana. ele também criticou a ação dos sindicatos e falou que os mineiros têm uma atitude muito violenta. loane sharp é branco. não sei se isso faz alguma diferença.
mas, violentos ou não, os confrontos dos mineiros de lonmim com a polícia deixaram 34 vítimas. o mundo criticou a ação policial e a considerou como um resquício da época do apartheid. alguns mineiros carregavam facões e gritavam contra as autoridades, mas nenhum funcionário usava arma de fogo.
os agentes afirmaram ter se defendido. essa história todos sabem. mas vou continuar repetindo.
os trabalhadores querem triplicar o salário, que atualmente é de 486 dólares. o grupo lonmin diz que paga 900. há seis meses a produção de platina vive sob forte tensão. culpa da crise mundial, principalmente no setor de automóveis.

um relatório da comissão nomeada para o caso das mortes deverá ser entregue ao presidente sul-africano, jacob zuma, até janeiro. a comissão quer responder algumas perguntas: por que os mineiros levaram armas (facões, principalmente) para a mina, e por que dois policiais foram brutalmente assassinados, e por que a polícia teve de usar balas reais?

a comissão diz que quer chegar a raiz do problema. mas para isso precisa entender os personagens desse conflito. especialmente os mineiros. eles são muito pobres. são facilmente levados a violência, ao mesmo tempo em que são facilmente acalmados, quando as pessoas tentam conversar dignamente com eles, explicando honestamente o que está acontecendo. como se fossem crianças, que reagem quando são encurraladas, mas são capazes de obedecer, quando convencidas.

nesta quinta-feira, 6 de setembro, mineiros grevistas de marikana marcharam até outra mina próxima. gritaram para que os trabalhadores parassem o serviço. e ameaçaram queimar tudo com quem estivesse dentro se não fossem atendidos. ameaçaram matar diretores da lonmim. dois clérigos chegaram ao local, pediram calma. reuniram representantes dos grevistas e conseguiram uma audiência com a empresa. apenas pediram que ficassem sentados, quietos, esperando pelo resultado da conversa. e assim eles fizeram. comportamento estranho de quem ameaçou botar fogo em tudo minutos antes. os grevistas dizem que governo e empresa tentam 
convencê-los a assinar um acordo de paz. eles não querem acordo de paz, querem aumento de salário.

a marcha se dissipou logo depois e todos voltaram para casa. 

em 2013, zuma vai tentar a reeleição. o assunto do massacre de marikana não será bem digerido pelo eleitorado se não for resolvido de forma justa. o que houve lá, está se espalhando em outras minas pelo país. numa jazida de ouro em joanesburgo, quatro pessoas foram mortas no fim de agosto. nesse caso a polícia usou balas de borracha e gás lacrimogêneo. 

mas o que houve em marikana? uma simples vingança policial pela morte dos colegas, dias antes do massacre?  

após o fim do apartheid, grande parte da população esperava que as riquezas minerais do país fossem postas a serviço do povo. muitos sul-africanos consideram que o presidente e seu partido protegem os interesses das grandes companhias e de seus próprios sindicatos. os membros dos sindicatos ligados ao partido governista recebem salários maiores do que seus colegas de oposição.

para alguns analistas, a agitação social pode ser o sinal de algo maior. o início de uma “primavera mineira”. a questão salarial pode levar a uma desobediência civil generalizada, com inúmeras ações de protesto. opinião de tony healy, especialista na lei do trabalho sul-africana.

nenhum dos lados ainda sabe lidar com a liberdade de protestar por seus direitos. isso leva tempo. nem o brasil, muito menos violento do que a áfrica do sul, não aprendeu completamente. não sabemos negociar. no brasil a greve é o primeiro recurso, não o último.

na áfrica do sul, o problema do massacre dos mineiros só revela a existência de outros. alguns muito profundos, dolorosos, cujas cicatrizes permanecem abertas… 
e sangrando.

(por fábio de amorim)


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